Falei que tentaria começar a escrever menos, mas acho que para esta newsletter escrevi até mais. Como prometi postei esta semana no blog sobre Rebel Ridge.
Dançando nas Nuvens/ It’s Always Fair Weather (Stanley Donen, Gene Kelly, 1955)
It's Always Fair Weather é o último e menos conhecido dos três musicais que Stanley Donen e Gene Kelly fizeram juntos, mas eu sempre o adorei. O filme começou como uma sequência direta de On the Town, mas parece que a MGM decidiu que não queria gastar dinheiro com Frank Sinatra. Eles provavelmente deveriam ter feito isso, já que foi um grande fracasso, mas acabamos recebendo esse filme e Guys and Dolls em 1955, então acho que todo mundo, menos a MGM, ganhou (e esse parece ser sempre o melhor resultado).
Em termos puramente formalistas, é uma das maiores realizações do gênero. De boa, em vez de escrever qualquer coisa sobre ele, eu poderia simplesmente colocar no YouTube cenas desse filme, porque as imagens falam mais do que palavras, especialmente quando misturam a mais elevada imaginação com o melhor artesanato que o dinheiro poderia comprar na Hollywood dos anos 1950. Cyd Charise dançando com os boxeadores? Sim. Gene Kelly fazendo sua pequena variação de Singin' in the Rain sobre patins? Sim! O Danúbio Azul? Sim! Sim! Sim! Eu provavelmente poderia continuar, mas postaria metade do filme, e acho que vocês já entenderam a ideia.
O filme não está muito distante de Singin' in the Rain, pois é muito semelhante à concepção de que existe uma ansiedade maníaca que só pode ser expressa/curada por meio da música e da dança, só que no filme isso é muito mais proeminente, pois “homens que voltam para os EUA depois da guerra e ficam decepcionados com suas vidas” certamente está muito mais próximo do público do que a chegada do cinema sonoro. Alguns amigos o compararam a Os Melhores Anos de Nossas Vidas (1946), mas ele me fez pensar principalmente naquelas comédias italianas do pós-guerra sobre amizade masculina que são ao mesmo tempo animadas e amargas. É pura farsa hollywoodiana, mas, quando a fantasia vence, parece ser muito bem merecida. Kelly e Donen estão em sua melhor forma como coreógrafos e as imagens em scope não poderiam ser melhores. A única coisa negativa que posso dizer sobre o filme é que a trilha sonora de Andre Previn não é um ponto alto dos musicais da MGM, mas os números são tão alegres, habilidosos e energéticos que não me importo se não os ouviria fora do contexto do filme.
Foi uma filmagem infeliz, de acordo com a maioria dos relatos, entre a incerteza da MGM, dois cineastas que não se entendiam e Kelly que detestava fazer o filme em scope (apesar de Donen ter mais do que respondido ao desafio). Depois disso, Kelly fez seu ambicioso filme de balé e então se acomodou em um patamar medíocre, enquanto Donen continuou misturando trabalhos formais primorosos com encomendas, pelo menos até Movie Movie (1978), e nenhum dos dois voltou a fazer algo grandioso no gênero musical (exceto por Kelly ter coreografado seus próprios números em Duas Garotas Românticas, de Demy), embora Kelly tenha tido sua oportunidade e o treinamento musical de Donen tenha influenciado muitas de suas realizações posteriores.
Um Grito na Escuridão/A Cry in the Night (Frank Tuttle, 1956)
Em minha busca por assistir a todos os filmes policiais de Hollywood da década de 1950 (chame isso de compulsão, se quiser), sigo vendo filmes com Edmond O'Brien que o tempo esqueceu. Eles são sempre rotineiros, embora alguns sejam melhores do que outros, mas têm aquela cara de linha de montagem de filmes de médio a baixo orçamento que um estúdio produz porque tem uma certa quantidade de filmes para lançar por ano, e isso antigamente era capaz de revelar algumas coisas interessantes. Eu gosto de O'Brien porque ele participou de White Heat (1949), de Walsh, e também de um filme triste de psicopata de John Hayes chamado Dream No Evil (1970), e isso abrange praticamente toda a gama de Hollywood, desde o topo do mundo até a sarjeta. Um verdadeiro pau para toda obra.
Enfim, gosto de Um Grito na Escuridão porque é um daqueles filmes que revelam algo que vale a pena dentro do formulaico. O'Brien interpreta um policial cuja filha Natalie Wood é sequestrada pelo mentalmente instável Raymond Burr e, assim, ele passa uma longa noite tentando recuperá-la, custe o que custar. O filme é baseado em um romance de Whit Masterson, que escreveu o original de A Marca da Maldade. É um filme muito histérico, todos os homens estão sofrendo de uma ansiedade de macho severa que eles têm que compensar excessivamente, O'Brien está desesperado porque sua filha está envelhecendo para alem de seu controle (ela estava no beco dos amantes, tarde da noite, imaginem o horror), o namorado dela Richard Anderson se sente castrado por não conseguir protegê-la, Burr tem uma mãe dominadora, etc. A exceção é Brian Donlevy, como parceiro de O'Brien, que tem o desempenho mais engraçado do filme, por concentrar-se simplesmente no trabalho de atuar no mais rotineiro filme policial; ele é uma âncora de estabilidade, um apelo de retorno a ordem da sociedade e de Hollywood.
Um Grito na Escuridão foi dirigido por Frank Tuttle, que começou a fazer filme filmes ainda no final do cinema mudo e foi por muito tempo um diretor de contrato da Paramount. Ele é conhecido principalmente por ter feito Alma Torturada (1942) com Alan Ladd, que é muito bom, e Ladd produziu esse filme, então, imagino que era para ele ser o protagonista em algum momento ou estava fazendo um favor a um cineasta de quem gostava. Se Tuttle é conhecido, é principalmente por motivos políticos, pois ele foi uma das forças motrizes originais do sindicato dos diretores e, mais tarde, teve o mesmo percurso de Edward Dmytryk, entrando na lista negra, permanecendo na Europa por alguns anos, citando nomes, mas, em vez de fazer filmes grandes depois, ficou no purgatório de obras como essa.
Reforcei tanto a natureza rotineira porque muito do que o filme tem de bom está relacionado a isso. A melhor parte são as cenas entre Wood e Burr (que está muito melhor do que o necessário para um filme como esse), elas são muito tensas e Tuttle o trata como um cachorrinho triste e perdido, enquanto Wood e o filme sabem que ele definitivamente a matará se ficar infeliz com ela, o que aumenta o horror do rapto todo. Em seguida, o filme corta para a caçada policial, que mantém sempre o tom exagerado, mas tem todas aquelas amarras dos filmes policiais de baixo orçamento. O movimento entre eles apenas funciona. Vi um filme que O'Brien co-dirigiu no início deste ano, chamado Shield for Murder (1954), no qual ele interpreta um policial assassino e usa isso como desculpa para ser muito intenso. Sempre que o filme corta para os policiais em seu encalço, as cenas são as mais monótonas possíveis. O vai-e-vem funciona melhor em Um Grito na Escuridão, porque a banalidade ressalta o quão histérico o filme realmente é e as cenas policiais também estão sempre muito próximas de uma ruptura. Trata-se de uma fantasia conservadora sobre o desejo de calar as ansiedades dos anos 50, mas apresenta muitas fissuras para funcionar assim.
Le Solitaire (Alain Brunet, 1973)
Cantinho de recomendações do Filipe. Falando em filmes rotineiros, gosto bastante deste, mesmo que no fundo seja só um filme de gênero muito bem conduzido. É uma coprodução França/Alemanha e um veículo para Hardy Kruger de quem eu sempre gostei porque ele é um dos protagonistas jovens de Hatari (1962). Ele é um ladrão profissional na cadeia que recebe a chance de participar de uma fuga se antes roubar o cofre do diretor do presídio. É um bom gancho para um filme do gênero e o filme é bastante esperto em misturar o ambiente da prisão com as cenas de golpe (claro que este homem esta preso independentemente de onde está).
Quase tudo de bom sobre Le Solitaire é sobre servir bem ao filme popular que ele quer ser. As três cenas de ação principais que devem ocupar cerca da metade do filme são todas muito bem pensadas, imersivas e executadas. O filme é dramaticamente previsto na promessa do título, Kruger prefere permanecer só, então as cenas de ação partem desta tensão homem/mundo em que Kruger geralmente age sozinho, mas o fora de cena mantém a paranoia de que tudo pode dar errado a qualquer instante por alguma traição. Brunet é hábil com o espaço da prisão e quando o protagonista sai dela em isolado em espaços urbanos. Como esperado de um filme policial francês do começo dos anos 70 tem um certo clima sub-Melville, mas Kruger é bom em vender o ladrão deslocado e melancólico. Tem uma sub trama sentimental sobre ele se reconectar com a filha que não é grande coisa e depois do último golpe o filme vai até a sua conclusão de forma bem funcional. Mas é um bom trabalho de cinema, que é meio que tudo que se espera quando se vê um filme desses.
O Pelicano/Le Pelican (Gerard Blain, 1974)
Um filme lindo e desesperador. Puro sentimento. É um dos nove longas que Gerard Blain dirigiu na segunda metade da sua carreira e um dos dois que ele protagonizou. Blain é claro o outro protagonista jovem de Hatari!, mas juro que não me programei para isso. De qualquer forma O Pelicano e Le Solitaire não poderia ter uma abordagem mais diferente apesar de dividirem curiosamente alguns princípios dramáticos iguais. Blain é um homem que faz tudo pelo filho pequeno, ele acaba indo para cadeia por se envolver num esquema para ganhar uma grana no exterior, oito anos depois ele volta a França pronto para rever o filho, mas a ex-esposa se divorciou e se casou com um sujeito rico, eles contaram ao moleque quer o pai foi embora e o novo padrasto não está nada a disposto a tê-lo na sua vida. Então Blain não tem os meios práticos/financeiros/legais de mudar a situação.
O filme é somente sobre uma coisa: a necessidade daquele homem de estar com o filho. Ele não propriamente dramatiza ela, durante boa parte da ação Blain está vagando só em cena, existem poucos confrontos e poucas sequências nas quais o filme avança qualquer trama e quando essas existem é só para reforçar a realidade prática da situação, um homem tem muito dinheiro e reputação e outro nenhum, logo a sociedade já decidiu qual deles tem a razão. O filme apresenta simplesmente o esforço daquele homem de existir num espaço e papel que lhe foram negados.
O coração do filme está numa série de cenas em que ele se aproxima da casa da ex e se apoia no muro e observa o filho a brincar na área externa do lugar. Vemos planos distantes do garoto enquanto a câmera passeia pelo lugar e vemos Blain fascinado dependurado. Em determinado momento desesperado, ele dirige até lá a noite e só dorme junto ao muro. Nunca temos dúvidas da entrega e sinceridade dele, assim como o filme é bastante honesto com como tudo aquilo é perturbador e nada saudável para ele. Desde as cenas iniciais pré-prisão fica claro que do momento que o garoto nasceu, este homem deixou de ter qualquer identidade para além da de pai. É um filme sobre um sentimento transbordante e sufocante, o cinema tem vários filmes assim sobre amor romântico, mas de um pai para o filho é algo bem mais raro.
Blain encara o filme como um romance em primeira pessoa, tudo o que temos é a experiência intoxicante daquele homem. Ocasionalmente a percepção dele se altera, uma memória, um retorno a algum sentimento passado e o filme acompanha ele, mas seu movimento adiante é sempre o de reforçar este sentimento paternal. É um filme pouco dramatizado, mas bastante romanesco. O cinema naturalmente se entrega a uma visão mais materialista do mundo, é de certa forma a luta de Blain como cineasta é de como interromper isto, como se mover de uma representação objetiva e seca das coisas para este outro espaço que existe quase delirante na percepção desta pessoa, um resgate da imagem de cinema em favor do sentimento. É um dos melhores filmes que vi pela primeira vez este ano.
A Traveler’s Needs (Hong Sang-soo, 2024)
Assisti a vários filmes novos, mas não foi uma boa semana para eles, mesmo quando eram interessantes, como Black Tea, de Abderrahmane Sissako, que é melhor do que as críticas que vem recebendo desde Berlim, ou a coleção decepcionante, mas muitas vezes empolgante, de imagens do passado do horror europeu de Cuckoo, de Tilman Singer, eles não eram exatamente bons, mas consegui ver o primeiro dos dois filmes de 2024 de Hong Sang-soo e adorei, como presumo que qualquer pessoa que me lê regularmente presume que eu iria adorar. Há poucas constantes no mundo, e Hong Sang-soo lançará dois ou três filmes todos os anos e que eu amarei a maioria deles é uma delas.
A essa altura, ele se transformou na maior indústria amadora de um homem só do cinema. Ele praticamente rompeu todos os vínculos que tinha com o cinema coreano na época em que o seu romance com Kim Min-hee se tornou um escândalo local e vem reduzindo o número de colaboradores desde então. Kim não atua nesse filme, o que é estranho, já que ela se torna uma parte tão importante dos filmes, mesmo quando está apenas em um papel secundário, mas ela recebe um crédito como “gerente de produção”, o que é bom porque, caso contrário, Hong Sang-soo teria finalmente conseguido ser o único não-ator creditado em um de seus filmes.
A qualidade artesanal desses últimos filmes de Hong é uma componente essencial de seu apelo. São filmes extremamente informais, parecem quase roubados no set e eles derivam seu significado dali. Hong sempre foi um excelente diretor de atores, seus filmes tratam de reconhecer de forma vibrante pequenos traços de comportamento que se acumulam lentamente. No princípio, isso envolvia constrangimento ou desespero, mas sua paleta emocional aumentou muito depois que ele começou a se concentrar mais nas mulheres por volta de 2010 e, recentemente, seus melhores filmes (A Mulher que Fugiu, o maravilhoso No Nosso Dia do ano passado e grande parte deste) colocam em evidência uma intimidade e cumplicidade compartilhadas. E seu hábito recente de dar aos atores suas cenas apenas no set contribuiu para seu bom olho para os seus gestos. Não vou fingir que não existem contratempos. Às vezes, um filme é um pouco raso e a abordagem minimalista significa que, quando sua concepção não funciona tão bem, ele não tem muito ao que recorrer.
Desculpe se estou falando mais sobre Hong do que sobre o filme, mas há uma sensação de que seu trabalho há uma década mais ou menos faz parte de um projeto maior (e eu sou muito defensivo quanto a ele). A Traveler's Needs é o terceiro filme de Hong feito com Isabelle Huppert (nota pessoal: o primeiro, A Viajante Francesa, é um dos poucos Hongs tardios que eu não amo), esses são filmes muito autoconscientes e o status de estrangeira dela e a necessidade de uma língua extra para se comunicar se tornam centrais para eles, e se Hong está muito acostumado a trabalhar com estrelas de cinema coreanas, elas são sempre bem integradas e Huppert nunca está. Ela continua sendo a maior estrela de cinema da atualidade, pois quem mais decidiria participar desse filme sem orçamento e sem equipe, no qual ela perambula por lugares públicos e tenta se comunicar com coreanos.
O papel da linguagem sempre se destacou nos filmes com Huppert e, talvez, ainda mais dessa vez. Mesmo depurando cada vez mais seus filmes, Hong nunca abriu mão do gosto por conceitos narrativos literários, e a identidade francesa de Huppert funciona neste filme como o gato faz em No Nosso Dia. Eu adoro a Huppert em A Traveler’s Needs, adoro como ela simplesmente fica por ali se sentindo à vontade em cada espaço, uma folga do bem, esse pequeno filme simplesmente se abre para o mundo, para o vento, para os lugares, para o rosto de sua atriz principal, que me é bastante tocante. Quase não há um filme ali? Sim, mas também é muito mais filme por causa disso. Provavelmente, poderíamos usar mais mestres assumindo para si o papel de amadores, pelo menos quando eles são talentosos como Hong.