Filmes da Semana (30/9/2024-6/10/2024)
Alguns noirs, Dieterle, Altman.
Um Amor em Cada Vida/Love Letters (William Dieterle, 1945)
Sempre tive curiosidade por esse porque o casal de atores principal (Jennifer Jones e Joseph Cotten) e o diretor William Dieterle colaboraram três anos depois num dos meus romances delirantes favoritos, Retrato de Jennie. Achava que este seria um rascunho e se é verdade que os dois filmes têm alguns pontos de contato, ele se revelou excelente a sua própria maneira.
É um romance bastante tortuoso e bem perverso, quase todo dependente de personagens mentirem ou omitirem o tempo todo. Todo mundo nele está apaixonado por uma imagem e/ou ficção que colocaram na cabeça e mais do que disposto a ignorar o bom senso e as boas maneiras para garantir os seus desejos. Acho que funciona em parte justamente por conta de todo o caminho que leva a cena final onde ninguém pode dissimular mais. E claro porque a fotografia do Lee Garmes e a música do Victor Young vendem cada maluquice que acontece e cada decisão estapafúrdia como a coisa mais romântica do mundo.
O roteiro (escrito curiosamente pela Ayn Rand) é muito bem estruturado para compensar o quanto as ações do filme vão contra qualquer senso comum. No centro estão as cartas de amor do título original e uma trama à Cyrano que acontece antes do filme iniciar no qual Cotten escreveu cartas a uma mulher em nome de um colega de exército e claro se apaixonou por ela e ela pelo homem por trás das cartas, de qualquer forma o colega de exército está morto com menos de dez minutos, e o que se segue envolve múltiplas investigações, um assassinato, amnesia, confissões, etc. O filme começo contado totalmente do ponto de vista de Cotten, demora uma eternidade para ele e Jones dividirem a cena, e termina todo do olhar dela e a passagem de um para outro é muito bem sustentada.
O filme me fez pensar muito em Um Corpo que Cai, na violência das ações e na lógica tortuosa e perversa que domina as personagens. Claro que o romantismo aqui justifica os gestos de uma maneira bem mais benigna do que punitiva. Isto dito, tem uns bons vinte minutos na segunda metade em que a possibilidade de Jones ser uma psicopata é crível e o comportamento de Cotten é tão duvidoso que eu me peguei pensando mais de uma vez “seu idiota se tu tomares uma tesourada vai ser muito justo”.
O sucesso do filme é muito dependente dele encontrar um tom extremamente excessivo e sustentá-lo por cada reviravolta e por encarar tudo de filme muito sincera. Eu nunca sei ao certo o que vou encontrar quando vejo um filme do alemão Dieterle, que fez alguns filmes bastante queridos, mas muitos filmes sem sal também, mas ele sempre foi bom em filmes que alcançam uma intensidade estilizada como este e o romance delirante lhe servem muito bem. E o elenco é ótimo, em especial Jones, mas também as atrizes (Ann Richards, Gladys Cooper) que ficam com a tarefa ingrata de conduzir a exposição do filme.
Me peguei pensando com a frequência com que Cotten foi escalado nesses papeis, apesar de a princípio parecer longe do ator ideal para esses personagens românticos, mas ele transmite uma presença neutra que permite que as emoções fortes dos filmes sejam projetadas nele que termina os servindo bem. Ele e Dieterle já até haviam colaborado num filme bem bonito no ano anterior chamado Ver Te Ei outra Vez, no qual ele e Ginger Rogers tinha alguns dias juntos antes dele voltar para o exército e ela para cadeia. Provavelmente ajuda que ele estava durante esses anos sobre contrato com David Selznick que sempre gostou de um filme romântico com emoções bastante carregadas e eu achava que este filme como Retrato de Jennie fosse por conta dos atores um filme de Selznick, mas calha de ser de Hal B. Willis, produtor de Casablanca. De qualquer forma, assim com Selznick tenho uma queda particular por filmes de amor louco e este esta entre os melhores do sub gênero.
Suspense (Frank Tuttle, 1946)
High Tide (John Reinhardt, 1947)
Em 1946, o crítico alemão Siegfried Kracauer escreveu uma das primeiras tentativas de discutir os thrillers policiais da década de 1940 que hoje costumamos chamar de filme noir. O título de seu ensaio é bastante revelador: “Filmes de Terror de Hollywood: Eles refletem um estado de espírito americano?” Com o passar do tempo, passamos a considerar esses filmes como estilosos, mas em grande parte realistas, apesar do comportamento extremo e da abordagem muitas vezes macabra, por isso acho que a ideia de tratá-los como filmes sensacionalistas que beiram o horror não é mais recorrente, mas não é absurda.
Um exemplo disso são esses dois pequenos thrillers lançados pela Monogram, a famosa produtora de filmes B, nos anos pós-guerra. O caro para seus padrões Suspense, que conta com talentos mais famosos na frente e atrás da câmera, e o sem nenhum orçamento High Tide, cuja única reivindicação à fama é ter sido o último filme que o astro do começos dos anos 30 Lee Tracy fez antes de sair de Hollywood. Ambos são histórias escabrosas e perversas de disputas dentro de um negócio (um ringue de patinação no gelo em Suspense, um jornal em High Tide) em que a ambição e o crime se encontram. Eles parecem deliciosamente amorais até voltarem atrás em seus finais e sua atmosfera é bastante corrupta.
Suspense, dirigido por Frank Tuttle, sobre o qual escrevi há duas semanas, o que me torna provavelmente a primeira pessoa a falar sobre ele duas vezes em um mês neste século, é muito estiloso, enquanto High Tide é bem mais focado em suas muitas reviravoltas em uma duração bastante curta de 70 minutos. No entanto, eles compartilham um mundo igualmente sombrio, e a simplicidade de High Tide funciona de maneira semelhante a todas as sombras de Suspense, pois as imagens pobres acabam se tornando de umesvaziamento punitivo.
Suspense foi filmado por Karl Struss, que foi um dos diretores de fotografia de Aurora, de FW Murnau, e parece estar gostando de usar sua experiência expressionista. Ele transforma o filme cada vez mais em uma trama de pesadelo cuja ambição do personagem principal envenena tudo. O título genérico do filme faz sentido quando fica claro que Suspense é, em muitos aspectos, um exercício. Naquela época, não existia a palavra noir, o que é diferente de os cineastas não reconhecerem as tendências do momento. Struss filmou Journey Into Fear, o elegante thriller de espionagem de baixo orçamento que Orson Welles produziu junto com seus primeiros filmes, e a sombra de Welles parece pairar sobre esse filme, que se assemelha muito a uma versão mais leve e não tão bizarra de A Dama de Shanghai, que Welles estava fazendo na mesma época.
Ele é co-estrelado por Belita, uma patinadora artística britânica que fez alguns filmes, o que fez com que o filme se passasse em um ringue de patinação no gelo, o que o torna mais interessante, pois não creio que haja outro thriller como esse que se passe em um ringue desses. No ano seguinte, os produtores reuniram Belita com o protagonista Barry Sullivan para um filme ainda melhor, chamado O Gangster, que se assemelha um pouco a este, mas parece mais direto em algumas de suas implicações políticas (o roteiro do filme foi escrito pelo mais famoso escritor da lista negra de Hollywood, Dalton Trumbo, e este, curiosamente, por seu mais prolífico testa laranja, Philip Yordan).
Se Suspense parece artisticamente autoconsciente, High Tide também parece reconhecer tendências, mas mais no sentido de vamos fazer uma versão barata desses filmes de sucesso. O filme é contado em flashback com Lee Tracy e Don Castle, o cara que ele tentou usar durante uma disputa de poder em seu jornal, em um acidente de carro à beira-mar (daí o título). Tracy fez sua fama interpretando jornalistas cínicos e corruptos e, é claro, esse é novamente o seu papel. Ele sempre foi ótimo em sugerir que estava realmente tinha gosto por qualquer tramoia em que seu personagem se envolvesse, e continua assim, embora também soe um pouco cansado de tudo isso. Tudo nesse filme é um pouco corrupto e todos são mesquinhos, e a trama continua se movendo rapidamente no caminho para o acidente que deu origem ao flashback. O filme é muito focado em entregar os prazeres mais diretos das suas picaretagens e revciravoltas. O diretor austríaco John Reinhardt foi um dos emigrantes europeus menos conhecidos da época (embora sua esposa Elizabeth tenha sido muito mais bem-sucedida como roteirista, tendo trabalhado em filmes como Laura e Cluny Brown). Eu já havia assistido a um de seus filmes, Open Secret, que ele fez no ano seguinte, um filme mordaz e um dos primeiros a tratar explicitamente do antissemitismo americano. Ele e seus colaboradores criam uma variação muito eficiente desse tipo de thriller, sensacionalista e um pouco exausto,
O caminho para a ruína em ambos os filmes é escabroso e chocante, e faz sentido que alguém que esteja abordando esses thrillers de uma perspectiva mais anti-Hollywood equipare seu mal-estar a filmes de terror.
The Glass Web (Jack Arnold, 1953)
Um tipo diferente de horror hollywoodiano: a chegada da televisão. Esse é um thriller simples mas muito engenhoso, ambientado em um dos primeiros programas de TV sobre crimes reais. Ele lembra um pouco O Relogio Verde na forma como equipara o sensacionalismo da mídia com sua caçada humana paranoica. Na primeira metade, John Forsythe interpreta um escritor casado que tem um caso com uma ambiciosa aspirante a atriz, que também está emblomando, Edward G. Robinson, mais abaixo dele na escala do programa. Então, em um de seus acessos de fúria, Robinson a assassina no momento em que ela começara a chantagear Forsythe e, é claro, os dois homens têm de colaborar em um episódio sobre o assassinato, à medida que parece cada vez mais que foi Forsythe quem o cometeu.
A segunda metade é excelente. Um emaranhado sem saidas que continua encontrando novas maneiras de se fechar em torno de Forsythe e usa muito bem o pano de fundo da TV. The Glass Web detesta e teme a televisão e, à medida que avança, sua distância em relação a ela se torna cada vez menor. No final, o confronto entre os dois homens é mediado por uma câmera de TV, já que o cinema desaparece nesse nova imagem em que tudo é visto e nada tem qualquer valor.
The Glass Web usa Robinson muito bem. Ele está interpretando um daqueles caras melancólicos que são seduzidos por uma mulher bonita até que ele estouro no qual já era perfeito em 1930, mas como se ajusta ao mundo vazio desse filme, não resta nenhuma simpatia por ele. Apenas um sujeito assassino em um negócio perverso. Gostaria de poder dizer o mesmo sobre todos os outros atores, que geralmente são pouco mais que funcionais, e as cenas sobre o casamento de Forsythe são muito maçantes.
O grande assassinato e o confronto final são ótimas cenas que jogam com a paranoia e a lógica cada vez mais de armadilha do filme, e a maioria das cenas relacionadas à televisão é muito boa. Ótimo cinema do panóptico, The Glass Web foi dirigido por Jack Arnold, que, assim como Dieterle, era alguém que conseguia achar um filme incrivel em meio a um outros muito mais anônimo. O único artigo que li sobre o filme foi um artigo na coleção Physical Evidence, de Kent Jones, e ele se refere a Arnold como ótimo em concepção, mas nem sempre o melhor cineasta, e eu entendo o que ele quer dizer. Os melhores filmes de Arnold (O Incrível Homem que Encolheu, Balas que Não Erram) têm ótimas ideias que eles simplesmente permitem que ressoem com todo o seu poder. The Glass Web não é tão bom quanto esses triunfos, mas também consegue fazer isso: o filme fica preso na teia de TV em todo o seu horror.
De Corpo e Alma/The Company (Robert Altman, 2003)
Terminei de rever os filmes finais de Altman, o que significa que revi De Corpo e Alma que é meu filme favorito dele a parte do seu auge entre 1971 a 1974. É um filme muito bonito e muito porque ele coloca em primeiro plano aquilo que Altman faz melhor de maneira bastante celebratória. É um filme de balé, a companhia do título original é, claro, um grupo de dança, que lhe foi encomendado pela sua atriz principal Neve Campbell. A sua trama é bastante simples – os filmes desse newsletter foram muito roteirizados e tortuosos, então faz sentido fecharmos com um minimalista -, e a despeito da atenção esperada aos bastidores e os comentários sobre funcionamento da arte e a sua relação com comércio, a experiencia do filme está mais próxima de algo como La Danse, o ótimo documentário de Frederick Wiseman sobre a principal companhia de balé de Paris.
Eu acho que me referi ao filme do Altman quando escrevi obre o de Wiseman 15 anos atrás. Em ambos todo o prazer se encontra nos números de dança aos quais o filme se entrega regularmente, mas como um é uma ficção e outro não, eles meio que produzem efeitos opostos, em Altman a ficção se interrompe para o trabalho dos dançarinos enquanto em Wiseman, é como se documentário observacional fosse tomado pela criação. O movimento do filme de Altman é deixar a ficção se distender cada vez mais diante de cada momento de dança.
É meio o que Altman sempre fez melhor como comentei semana passada, um universo bem delineado e um grupo de personagens que existem para permitir que ele observe o que seus atores-colaboradores conseguem colocar em cena, mas reduzido ainda mais, um pouco como em Jazz ‘34 já que atores se tornam secundários a performers. Se ele gosta de fazer experimentos de criatividade comportamental, nada como um filme que realmente trata de trabalho artístico. É um filme muito excitante neste gesto da câmera de Altman se mover naquele meio. Bastante despojado e muito alegre, pouquíssimo de qualquer sinal de cinismo que por vezes se associa ele. Só o prazer de ver a câmera de cinema encontrar este gesto criativo expresso em cada corpo em cena.