Filmes da Semana (9/9/2024-15/9/2024)
Vou tentar fazer algo diferente neste lugar. Toda semana, vou pegar de 3 a 6 filmes que vi e escrever um pouco sobre eles. Não serão críticas completas, mas também não serão apenas pequenas pilulas. Sei que muitos reclamam que eu devia escrever mais em português, então aqui vai servir como espaço para isso também. Não posso prometer que escreverei 2000 palavras toda semana, pois fiquei muito entusiasmado dessa vez, mas espero escrever mais de 1000 regularmente. Também escrevi sobre Rebel Ridge, mas o texto cresceu um tanto, então decidi guardá-lo para o meu blog. Deve aparecer por lá durante a semana.
Tenho algumas reservas quanto a colocar ainda mais textos meus em outro site pertencente a alguns techbros e quanto a algumas das políticas de moderação do Substack (ou a falta delas), mas essa parece ser a realidade cruel da web atual e, de certa forma, ainda mais da crítica de cinema, e eu sempre prefiro quando meus textos podem estabelecer pelo menos um pouco de diálogo, e esse site parece funcionar bem para isso.
Tentarei usar essas postagens para destacar outros trabalhos que publiquei online, então, se você ainda não sabe, comecei uma nova coluna mensal no ótimo site português À Pala de Walsh. A primeira está disponível aqui.
Key Largo (John Huston, 1948)
Nunca fui muito fã desse aqui, mas há algo muito forte no encontro entre Edward G. Robinson e Humphrey Bogart. O que importa no filme está muito ligado ao confronto entre eles e, quando Huston resume seu filme aos dois, há uma força eletrizante. Robinson é uma figura memorável como o gângster e Bogart faz o oposto; um está sempre colocando as coisas em ação enquanto o outro observa.
É um trabalho muito disciplinado da parte de Bogart deixar Robinson roubar o filme (ele faz mais ou menos isso em O Tesouro de Sierra Madre, que ele e Huston filmaram em sequência com esse também). Bogart ficou famoso primeiramente (nos palcos e mais tarde no cinema) com A Floresta Petrificada, outra história de gângster tomando de refém um espaço fechado, e há algumas semelhanças entre eles, e Huston parece estar muito ciente disso (A Floresta Petrificada teve importância suficiente para Bogart para que ele interpretasse o gângster novamente em um filme para a TV no final de sua vida, que está no YouTube). Logo, Key Largo tem algum fascínio como um texto sobre estrela (com o bônus adicional de que Robinson era o ator que a Warner queria escalar para o papel em 1936), ele agora é o herói em vez do gângster, embora um muito passivo, mas ele ainda é Bogart, então sabemos que o filme é um longo jogo de espera até que ele decida que a violência de Robinson passo do ponto. A estrutura dramática não é muito interessante, mas as reações dos dois atores são consistentemente fortes.
É uma pena que o filme em torno do filme seja uma chatice. Huston e Richard Brooks ganharam um Oscar pelo roteiro, provavelmente porque é tão mecânico que engana como uma boa escrita, mas grande parte das situações soam falsas e é tão previsto em como Robinson humilha os outros que se torna enfadonho rapidamente, e os reféns são geralmente símbolos sem graça com muitas atuações maneiristas (Lionel Barrymore e Claire Trevor são especialmente atrozes, ela também ganhou um Oscar). Tudo em Key Largo parece ser pensado demais de cima para baixo (uma limitação comum nos filmes de Huston), mas ainda assim as atuações de Robinson e Bogart ancoram ele.
Law and Disorder (Ivan Passer, 1974)
Esse é um filme bastante esquecido de um cineasta bastante esquecido, do qual eu gosto. É um produto obvio da Hollywood dos anos 70, nova e antiga, e ainda mais um trabalho de um cineasta estrangeiro no exílio. . “Os EUA seriam um lugar menos violento se os americanos colocassem para fora mais os pervertidos que existem neles” é definitivamente a visão de mundo de um europeu que está um pouco indignado com os bárbaros ao seu redor. Caroll O'Connor e Ernest Borgnine são dois caras que conseguem um trabalho noturno não remunerado como policiais auxiliares, um novo hobby que eles adotaram porque estavam preocupados com a violência local, mas, na verdade, porque gostam do poder que isso lhes dá (ambos trabalham com serviços, e o filme inclui várias cenas em que eles têm que lidar com clientes insatisfeitos). Law and Disorder é um filme sobre o uniforme policial, o poder que ele oferece e o quanto inútil ele é. O filme com o qual mais se assemelha é a elegia policial de Richard Fleischer, Os Novos Centuriões; ele busca uma melancolia avassaladora semelhante, mas o fato de esses caras serem policiais de mentira dá a ele uma dimensão mais farsesca. Não são as forças sociais externas que condenaram esses dois caras, mas um desejo interior.
Passer foi, é claro, o roteirista tcheco de Milos Forman, mas ele nunca se adaptou muito bem a Hollywood, e esse filme tem uma sátira exagerada com pinceladas dramáticas de maneira semelhante aos seus primeiros trabalhos, está sempre prestes a se tornar uma comédia plena e não tem vergonha de abraçar o constrangimento, mas todos os lugares parecem degradados (ótimas trabalho de locação) e o desespero de todos, social e existencial, é enfatizado. Uma das muitas razões pelas quais esse filme é tão obviamente feito em 1974 é que Borgnine e O'Connor estão cercados de mulheres (esposas, filhas, amantes, clientes) que basicamente existem somente para lembrá-los de que eles são um fracasso. Eu não diria que Law and Disorder é um dos melhores filmes de Passer, ele nem sempre consegue atingir o tom de farsa mais pathos que está buscando (e comete um dos piores pecados que um filme de meados dos anos 70 poderia cometer, a meu ver, ao desperdiçar Karen Black), não é nenhum Cutter's Way ou Born to Win (todos os filmes de Passer deveriam se chamar Born to Win com ironia), mas está se aventurando muito com grandes riscos e todas as suas esquisitices são fascinantes, e há algo no modo como o filme trabalha com seus dois astros: ambos foram escalados de acordo com seus tipos reconhecíveis, mas o filme investe muito para permitir que eles deem a esses papéis um peso emocional que vai alem deles.
As Baleias de Agosto/The Whales of August (Lindsay Anderson, 1987)
Uma das coisas mais prazerosas que fiz este ano foi assistir a uma grande parte da filmografia de Bette Davis, a maioria de seus filmes da Warner em março e abril, e depois uma curadoria mais seletiva com o passar do tempo de seus anos pós-Warner nos últimos três meses. Terminei com uma revisão de As Baleias de Agosto (também assisti a um filme para a TV do Ron Howard, não muito bom, mas razoável, chamado Skyward, no início da semana passada). Sei que ela fez Wicked Stepmother depois desse, mas gosto demais de Bette e Larry Cohen para vê-lo pela terceira vez, e essa foi uma conclusão adequada.
É, obviamente, um filme sobre velhice e morte com um elenco principal composto por Davis (79), Lillian Gish (93), Vincent Price (76) e Ann Sothern (78). Hollywood na década de 1980 é surpreendentemente cheia de filmes sobre envelhecimento, provavelmente uma consequência de tantas estrelas de Hollywood no crepúsculo de suas carreiras e, é claro, da quase estrela na presidência, que fez da nostalgia da velha Hollywood uma ideia recorrente (muitos atores foram procurados para participar desse filme, incluindo o casal Joel McCrea e Frances Dee, que a maioria das pessoas associaria na década de 1980 associariam muito mais como presenças regulares da Casa Branca). Acho que As Baleias de Agosto é a melhor deles, em parte por causa de sua relativa contenção, é sentimental, mas principalmente honesto em relação à enfermidade e ao tipo de ressentimento que uma vida longa pode agregar, e evita conflitos geracionais ou qualquer grande catarse, termina com a cabeça dura Davis oferecendo uma pequena concessão à irmã, mas isso é o máximo que está disposto a fazer.
Assim como Key Largo, essa é uma adaptação de peça muito teatral, com a ação se desenrolando ao longo de um dia na casa de veraneio das duas irmãs e na maior parte do tempo composta por elas conversando com as suas visitas. Não tem nada tão chamativo quanto a expressiva fotografia de Karl Freund, e a peça de David Barry é correta, mas está longe de ser algo notável, mas é uma filmado de forma discreta, muito afinada com seus atores, e bem mais fluida. Trata-se de um filme de gestos e pausas em vez de grandes movimentos retóricos e simbólicos. Pode parecer uma curiosa inversão de “O Que Terá Acontecido a Baby Jane?”, o filme que lançou o período final da carreira de Davis, novamente duas irmãs isoladas cujo relacionamento é envenenado pelo ressentimento, uma cuidando da outra doente, a chegada de um pretendente forçando uma definição mais clara das suas relações, mas não há os efeitos sensacionalistas de filme de horror, nem os excessos barrocos, apenas muita fragilidade humana. Lindsay Anderson o dirigiu e não poderia estar mais distante de seu mais conhecido Se..., mas eu gosto mais desse, e não é por ser do contra. Esse foi seu único filme americano e ele obviamente gosta do contexto e da maneira como isso permite que ele se concentre na ação em si no lugar de um grande comentário sobre a Inglaterra.
Ele é muito generoso para com Gish, com muitos closes excelentes, e ela o retribui. Davis esta inesperadamente acessível, muito frágil (ela teve alguns problemas de saúde na época) e se aproveita ao máximo de suas falas, e há um trabalho notável de Vincent Price como um aristocrata russo que espera que as irmãs se tornem as últimas em sua linha de benfeitores ricos, que é uma mistura de charme e pragmatismo sem nenhum de seus tiques habituais. Há uma última cena entre Gish e Price que é tão boa quanto esse tipo de filme consegue ser. As Baleias de Agosto se beneficia do contexto; com exceção de Ann Southern (que nunca mais atuou, mas viveu até 2001), todos os atores e Anderson se foram até 1994, de modo que a maior parte do que é discutido no filme parece ser ponderado e urgente.
La Passagère (Héloïse Pelloquet, 2022)
Chien de la casse (Jean-Baptiste Durand, 2023)
Vou aproveitar a oportunidade para usar a nova coluna para fazer algumas recomendações. Esses dois filmes franceses valem muito a pena ser vistos e acho que não foram muito comentados. Cheguei ao filme de Pelloquet porque ela trabalhou como montadora para alguns cineastas de que gosto (Axelle Ropert, Guillaume Brac), é um caso extraconjugal ambientado entre pescadores, sobre uma mulher na casa dos 40 anos (Cecile de France, muito bem, como sempre) que começa um relacionamento com o jovem gostoso que começa a trabalhar como aprendiz no barco de seu marido. É um filme imersivo e muito prático que mapeia o território emocional de alguém que precisa pensar muito sobre o que está fazendo a cada momento. Pelloquet é muito boa com o ambiente de trabalho que serve de pano de fundo (as cenas no barco são ótimas) e sabe registrar as diferentes maneiras como ambas as partes lidam com seu relacionamento. Muito íntimo e atento. Os homens (Félix Lefebvre como o jovem amante e Grégoire Monsaingeon como o marido) também são muito bons e Pelloquet sabe como cada relacionamento é muito diferente, mas se aproveita de uma química íntima geral. É um filme muito discreto, o que explica poucas reações, composto de grandes emoções.
O filme de Durand teve um pouco mais de tração no meio crítico, é também muito bem observado e interessado na ambientação e no trabalho. É sobre o laço emocional entre dois amigos de longa data e também sobre classe e a quantidade de oportunidades que lhes são dadas. Depois, descobri que Durand tem um papel no novo filme de Alain Guiraudie e isso me fez rir muito, porque fiquei o filme inteiro dizendo a mim mesmo “isso parece muito com Guiraudie”, em parte por causa do olhar, mas também por causa da forma específica em que todos são governados por emoções e desejos instintivos, mas mais de uma forma social moral do que sexual. Anthony Bajon e Raphaël Quenard são ótimos como os amigos, especialmente quando estão dividindo o espaço. A ambientação é maravilhosa, com ótimas tomadas externas durante todo o filme, e a descrição da classe trabalhadora contemporânea da França, com pouca retótica, é muito boa. Há também uma espécie de triângulo amoroso quando Bajon, que geralmente aceita os abusos do mais assertivo Quenard, arranja uma namorada que tanto abre seu mundo quanto não, porque o apego ao lugar e aos relacionamentos é grande demais. O que mais me agrada em Chien de la case é que, embora seja muito distendido, ele entende o valor de pensar em seus relacionamentos e na observação de classe por meio de uma lente ficcional.
Cidade;Campo (Juliana Rojas, 2024)
É um filme por vezes empolgante e em outras vezes decepcionante este novo da Juliana Rojas. Ela é uma das nossas melhores diretoras, então faz sentido esperar uma liberdade maior dela. Cidade;Campo o título por si só oferece um peso enorme, apesar do ponto e virgula deixar claro que se trata mais de uma extensão que uma oposição. Ainda assim existe algo ilustrativo bem frustrante a respeito do filme, uma necessidade de se adequar aos conceitos que se chegou antes da câmera rodar. Tem menos invenção e descoberta do que em Sinfonia da Necrópole e As Boas Maneiras.
Quando o filme tenta ser mais prático emperra um tanto na necessidade de bater ponto nas observações sociais, que raramente sugerem simplesmente um bom olho. As cenas da Fernanda Vianna se adaptando a cidade na primeira parte sofrem muito com isso apesar dos esforços da atriz. Nessas horas o filme aponta para alguns limites do cinema brasileiro recente, dividido ele próprio no dentro e fora, no acender uma vela para o curador internacional e outra para as expectativas de uma plateia engajada com o local. Não é uma tensão que se costuma resolver muito bem por aqui, mas acho os filmes anteriores da Rojas mais livres dela (curioso pensar que este ano tivemos o Greice do Leonardo Mouramateus que é um filme sobre estar suspenso entre Brasil e Portugal, de um cara que hoje mora lá e que parece ter encontrado no seu deslocamento um olhar muito mais pessoal que o dos seus primeiros filmes).
Agora a Rojas é muito talentosa e dai o filme sai por vezes do programa, o deslocamento das personagens nos seus lugares consegue ter uma ressonância assombrada real (ele é melhor quando o sobrenatural é mais pronunciado), nesses momentos o filme consegue existir nesta passagem entre os lugares que é por fim desenraizada. Um Brasil fora de lugar, onde esta impossibilidade de pertencer no hoje e agora encontra um sentido próprio. Essa perturbação nas relações acumula uma inquietação lúgubre, não acho que a segunda metade seja melhor que a primeira, mas ela se beneficia de vir depois de já trazer com ela um pouco deste efeito.